Quem não tem superstições
Como datilógrafo
de trabalhos que a Olímpia faz para um curso de muita sabedoria, no Conservatório,
sempre tenho aprendido um sem número de coisas interessantes, a maioria
delas de caráter bem regionalista, muitas mexendo com a alma deste sertanejo
impenitente, apaixonado pelos assuntos da terra e da gente. Já aprendi,
por receitas do curso, fruto de demoradas pesquisas junto às fontes,
a fazer um tanto de produtos caseiros, numa obediência quase ritualística,
do mesminho modo que a minha avó fazia. Minha avó e minha mãe,
pois lá em São João do Paraíso, em Coqueiros, em
Mato Verde, Salinas, Taiobeiras, no idos dos anos trinta e quarenta, o sabão
era o decoada, e o azeite ainda era feito em casa, de mamonas bem escolhidas.
Datilografar, hoje, é recordar a infância, e isso é bom...
O trabalho desta semana, já que estamos na Semana do Folclore, foi sobre
as superstições norte-mineiras... e universais, pois gente crédula
existe é em toda parte. Leitura de Câmara Cascudo, leitura de Hermes
de Paula, leitura de Clarice Sarmento, perguntas à nossa lavadeira D.
Antônia, questionário com Joaquim, meu jardineiro e vigia, conversa
disfarçada com a mãe da empregada, olho vivo no dicionário,
tudo sério que chega a espantar, porque a professora é muito exigente
e quer pesquisa no duro... A ordem é ir às fontes, perguntar só
a quem sabe realmente; nada de segunda mão. Para dar maior cunho de validade,
quando passamos, Olímpia e eu há dois anos em Natal, no Rio Grande
do Norte, lá fomos à casa do velho Câmara, vê-lo e
ouvi-lo num cerimonial digno de bons estudantes.
Pois bem! Sobre superstições (como estou com medo de o linotipista
esquecer-se do “s” depois do “r”) assim ficou escrito
mudada a ordem, mas conservada a essência do que rezava o dicionário:
“É difícil encontrar quem não as tenha. Na verdade,
todo mundo tem, lá no fundo, bem conservada, uma pequena ou grande superstição.
Elas resultam, essencialmente, do vestígio de cultos desaparecidos ou
de deturpação ou acomodação de elementos religiosos
contemporâneos, condicionados à mentalidade popular. São
gestos aos milhões, reservas, atos do instinto, subordinados à
mecânica do hábito, assim como um tique quase obrigatório
e reflexo”. Tudo científico, com palavras bem cuidadas, ainda acrescentado
o aspecto mais interessante: que as superstições são sempre
de caráter defensivo, respeitadas pelas pessoas que querem evitar mal
maior ou distanciar sua efetivação, ou um acontecimento fora do
normal ou fora da vontade. Assim, assim...
Por que o povo se apega a essas práticas? São elas destituídas
de fundamento científico? Como foram inventadas? Quando? Onde? Por quem?
Sem fundamento de ciência não há dúvida, nem pode
haver. Mas, por quê? Quem sabe a realidade e a fantasia que passam pelo
coração do povo? Isso nem Manoel Campolina, meu colega, poderia
responder. Nem ele, nem Dr. Hermes, nem o maior de todos, o Cascudo do Rio Grande
do Norte. Nem os sete sábios da Grécia reunidos. É que
o povo tem seus preconceitos, as precauções, o direito de defesa
naquilo que possa achar perigoso.
Temor, ignorância, religiosidade sem fundamento, presságios infundados,
tudo isso é povo, é povão...
O assunto é tão interessante que me permito voltar a ele, sem
demora. Por hoje, fica só a doutrinação. A receita virá
depois, pois, vou fazer também as minhas próprias pesquisas. Para
dar sorte, vou pendurar logo uma ferradura de sete furos atrás da porta
e plantar no quintal um pé de arruda. Comigo-ninguém-pode... Ou
não poderá...
ser imortal!