Português de cá e de lá
Segundo o professor
Silvio Elias, a língua nasce como um produto da cultura, da alma de um
povo, da sua filosofia, da sua lógica. E perdura enquanto a cultura perdurar.
E é aí, entretanto, que é preciso contar com o fator homem,
e não julgá-las, como fez Splenger, mero produto de forças
históricas misteriosas e fatais. Claro que esse homem, quanto mais bem
dotado intelectualmente, quanto mais senhor das leis da natureza, quanto mais
civilizado, maior poder exerce sobre as culturas. A língua, não
existindo por si mesma, mas só no homem que a emprega, terá de
adaptar-se ao seu estilo, e será como ele lerdo ou ágil, majestosa
ou vulgar, vivaz ou petrificada, uma espécie de espelho da realidade
de cada povo, de cada região.
Assim, a língua representa o próprio homem, sua condição
social o local onde nasce e vive, seu grau de cultura. Representa também
os sentimentos, a coragem, a força de vontade, as condições
de saúde, o patriotismo, até a religião. Do povo depende
a língua, que pode ser oculta, vibrante, civilizada ou vulgar. Dependendo
dele, ela pode ser também romântica, lírica, política
ou simplesmente comercial, opaca como o barro ou transparente e translúcida
como o orvalho.
No Brasil, falamos e escrevemos a língua portuguesa, a nosso modo, é
claro, principalmente depois do brado de independência do grande brasileiro
José de Alencar, misto de ufanismo e exaltação patriótica,
verdadeiro minerador dos sentimentos dos trópicos selvagens de nossa
terra, venha a inspiração das aldeias indígenas ou das
ruas movimentadas de nossas metrópoles. Quatrocentos anos depois de trazida
para cá, surgiram, como teria de surgir, considerável número
de diferenciações, deu modalidades de expressão, de indisciplina
espontânea tão própria à alma do nosso povo. E o
romântico e bem brasileiro Alencar, criador de Iracema e de Poti, escrevendo
bonito, foi quem melhor viu e anteviu a nova realidade.
Mesmo fora do Brasil, na mãe-pátria portuguesa, no local da invenção,
nossa língua não permaneceu estacionada, não se estratificou,
como aliás, não poderia acontecer com nenhuma língua. Evoluiu
como tinha de evoluir, mercê principalmente da alma conquistadora de amantes
da descoberta e descortino de novos horizontes. Se é verdade que já
não falamos a mesma língua de D. Sancho ou de D. Diniz, Camões
também já não falava, como Camilo ou Eça não
se expressavam como Camões. Em Olavo Bilac, já bem diferente,
encontramos música, lirismo, amor às tonalidades puras, versos
com novo colorido verde-amarelo da paisagem brasileira. De Vieira, mais brasileiro
que português, até Guimarães, outra grande distância.
E porque não falar da metamorfose existente entre a poesia de Sá
de Miranda e a de Carlos Drumond e de Cecília Meireles e Adélia
Prado? Tudo boa gente falando a mesma língua, só que com tempero
diferente.
Sei que muita gente comenta que nossa língua está se acabando
aos poucos, está sendo impiedosamente destruída pelos que falam
ou escrevem mal, pelos que a deturpam, pelos que a não respeitam. Será
que isso é verdade? Não terá a língua um automático
instrumental de defesa da sua própria sobrevivência? Não
sejamos apressados no julgamento, não sejamos injustos. Potencial vivo
e vivificante, a língua portuguesa já, a esta altura, com quase
um milênio de história, dos quais a metade no Brasil, ainda terá
muito o que falar, ainda será objeto de muito estudo, contará
com defesas e ataques neste nosso admirável mundo novo das comunicações.