O povo é que faz a língua
Há
poucos dias, quando eu estava formando a Mesa para as solenidades de lançamento
do livro “3 Vezes Poesia”, na Academia Montes-Clarense de Letras,
logo depois de convidar o doutor Konstantin Christoff, autor da capa, convidei
também a apresentadora da obra, a professora Iede Ribeiro Christova,
acentuando, como pude, as duas sílabas finais do seu sobrenome de casada,
forma feminina de Christoff, de Konstantin, seu marido brasileiro nascido na
Bulgária. No caminho de volta para casa, o meu filho João Wlader
perguntou-me o porquê de alternância masculino/feminino em nome
próprio não comum em antroponímicos da língua portuguesa.
Fiquei alegre da sua curiosidade e dei uma risada por dentro, contente de alguém
ter mordido a isca da minha séria brincadeira em ter quantificado e sonorizado
dois fonemas marcadores do gênero. A experiência foi gratificante.
E daí, qual é a graça? Qual é o problema de um nome
masculino tornar-se feminino e vice-versa? É que, no Brasil, isso não
é normal. No caso de Konstantin e D. Iede isso foi possível porque
eles obedeceram à origem búlgara do nome, obedecendo mais à
tradição dele do que à dela, prevalecendo o critério
para nós não consuetudinário. Tenho em casa um caso quase
semelhante embora o contrário: minha mãe ao se casar adotou o
nome de Anália Morais Sobrinho, aproveitando o “Sobrinho”
no masculino, de José Arruda Sobrinho, já que tenho este último
sobrenome um significado de parentela, ficaria com uma indicação
errada, o que devem ter resolvido evitar, mesmo diante de uma forma estranha
e incomum.
E agora, depois disso tudo, onde devo chegar? Claro, leitor, que eu estava apenas
preparando o seu espírito para o objetivo da crônica. Na verdade,
o nome próprio, bem diferente do comum, não tem conteúdo
semântico, nada pode ou quer dizer, é apenas um titula distintivo,
menciona um ser particular. Próprio é porque pertence a alguém,
é propriedade particular, especial. Leitão de Abreu nada tem a
ver com o significado de leitão, Rabelo ou Rebelo não diz coisa
alguma da peça do arado, a rabiça como é chamado em Portugal,
Valente, Barata, Leite, Pereira, Silva, Leão, Santos, Batista, Oliveira,
nada, nada obedece à etimologia, nenhum valor significativo conservam
da origem.
O que eu quero mesmo dizer é que a flexão de nomes próprios,
em Portugal, é muito comum, principalmente no processo de formação
popular das palavras, o que, em alguns casos de filiação, já
era comum desde o velho latim vulgar da Península Ibérica, quando
Mendes era o filho de Mendo, Álvares era o filho de Álvaro, Bernardes,
de Bernardo, Fernandes, de Fernando. Assim, é normal encontrarmos no
território português mulher e filha de Rebelo chamada Rebela, de
Frazão chamada Frazoa, de Pinho chamada Pinha e até de Leitão
chamada Leitoa, assim como Mario marido de Maria, Precioso marido de Preciosa.
O sobrenome Bezerra não é senão o feminino de Bezerro.
O caso mais conhecido, em Portugal, data dos albores da língua, em 1187,
quando el-rei D. Sancho I escreveu a primeira poesia do nosso idioma para a
sua famosa e formosa mulher a Sra. Maria Pais Ribeiro, composição
logo denominada de “A Ribeirinha”, a mais conhecida cantiga de amor
da fase arcaica, citada por qualquer estudante do curso de Letras, de cá
e de lá.
Se vem de tão longe a tradição, não há remédio
para pretensos puristas, invocados cães-de-fila da gramática.
O povo é quem manda. O povo é que faz a língua...