Manoel Quatrocentos
Estou no décimo-quarto
andar do edifício do Banco do Brasil, no centro de Fortaleza. Aqui dentro
a temperatura é de 18 graus, cortinas fechadas em quase todas as janelas,
menos em uma que dá visão direta para o mar. Lá fora o
calor intenso, um sol que daria gosto se estivesse na praia. O céu de
brigadeiro, de um azul que indica não haver igual em nenhuma parte do
mundo. Fazendo moldura, abaixo da linha do horizonte, o Oceano Atlântico
que mais parece de clorofila que de água salgada: o verde é intenso,
quase um verde de esmeralda ou de turquesa, daquele verde tão lindo como
a cor dos olhos de uma bonita mulher de olhos verdes. É o mar de Iracema,
a virgem criada por José de Alencar, de lábios de mel e cabelos
mais negros do que a asa de graúna e a pele mais macia que a pe1úcia
de um pêssego maduro em manhã de chuva. É aqui a capital
do Estado do Ceará.
É aqui nesta festa urbana, onde trabalho e vivo cada minuto, que recebo
um telefonema de Olímpia, com notícias de casa, de Montes Claros
e da região baiana de Minas. Bebo com a audição cada detalhe,
cada ângulo de comentários. Misturo tudo com uma profunda saudade
dela e das coisas com sabor mineiro. Quem nasceu? Quem vive ainda? Morreu alguém
conhecido? Ela me fala das mortes de dois prefeitos, das passagens súbitas
de Caetana Meira, de Afrânio Tempone, da viagem eterna de Manoel Quatrocentos.
Sente profundamente a ausência da Caetana, tão nossa amiga, quase
nossa vizinha, companheira da Cada da Amizade, do Elos Clube, do Rotary. Ninguém
nasceu para viver definitivamente. Haverá sempre um último dia.
Mas acostumar-se com a ausência física de pessoas amigas, mesmo
que não estejam sempre próximas de nós, é sempre
uma angústia. Não existe alegria na morte. Mesmo de longe, sinto
a falta dos bons amigos. Penso em cada um. Vejo méritos em todos. Da
alegria de viver de Tempone, por exemplo. Há poucos dias, eu tinha convencido
Caetana a ir com a Meira a uma convenção do Rotary em Caxambu.
Fiz propaganda de maravilhas do encontro rotário. Ela aceitou.
Do verde do mar, da imensidão do oceano, da fantasia do céu do
Ceará, volto-me inteiramente para a idéia desta crônica,
focalizando na memória as muitas vezes que vi e admirei a figura nostálgica
e cavalheiresca de Manoel Quatrocentos, um misto romântico de Dom Quixote
e de Carlitos, último dos distantes conquistadores da beleza e do charme
de mulheres famosas do velho cinema hollywoodiano. Sempre o verde do mar cearense
o foco principal da lembrança do velho Manoel? De tudo que ele tinha
na vida – e quase não tinha nada além do machado de cortar
lenha – o de que mais se orgulhava era do verde dos olhos que herdara
da mãe. Pode ser que seja isso, porque nos olhos do Manoel Quatrocentos
estavam quase todas as suas maiores qualidades: a gentileza, a alegria, o humanismo,
o desejo de conquista, a admiração por Montes Claros, a cerimônia
com as mulheres a ironia com os orgulhosos, a malícia com os velhos,
a simpatia com os jovens. Grande Manoel!
Lembro-me perfeitamente dos meus primeiros tempos de estudante, lá pelos
idos de 1951, quando íamos ouvir, aplaudir e anarquizar o jovem Manoel
Quatrocentos, o “maior” cantor de boleros da Rádio Sociedade
nos programas de auditório, no Cine Montes Claros e Cine Ipiranga. Chupando
cana, comendo pipocas, fazendo bolinhas de papel de caramelos para jogar no
animador e nos artistas, que grande alegria era cada manhã de domingo!
Manoel Quatrocentos, mais romântico que o eterno romântico Adauto
Freire, meu amigo, fazia poses de Gregório Barros, lançava beijos
para as belezas invisíveis de Ingrid Bergman, Viven Leigh e Lauren Bacall.
Era como se ele estivesse vivendo cenas de Casablanca e E o Vento Levou, só
possíveis de serem descritas pelo companheiro Ângelo Soares Neto,
outro fã incondicional do Manoel, que a esta hora deve estar também
muito triste, chorando mágoas com Haroldo Lívio. Quantas vezes
pedíamos bis, bis só para sentir as impostações
de voz de quem se acreditava, Tyrone Power, Charles Boyer, Errol Flinn, ou,
nas horas de maior coragem, o próprio Charles Starett ou o Flash Gordon.
Lembro-me também da mania do Manoel Quatrocentos em falar línguas
estrangeiras, no enrolado dialeto dos gringos; Stil Vous Plait Merci Beaucoup,
Yes, Thank You, Buenas Noches, Oh Muchachas, Take it ease, Shut up, tão
comuns aos artistas franceses, mexicanos ou de Hollywood. Era um tal de falar
em Footings e Elirts que dava gosto! Lembro-me dos amores de Manoel Quatrocentos
com o que parece ter sido seu único amor materializado – a Maria
Tostão, lá no alto dos Morrinhos, quem sabe a sua alegria legítima.
Perfumado sempre nas horas de folga, nunca sem gravata, castelhano gravado no
sotaque, Manoel Quatrocentos foi um homem despojado de orgulho nas horas de
trabalho braçal, dono de pouco, mas sempre sagrado dinheirinho para as
próprias necessidades.
Do Ceará, quero mandar meu último aplauso a Manoel Quatrocentos,
o maior candidato ao noivado com as mais lindas mulheres do mundo. Que a manhã
de sábado, 23 de abril de 188, tenha sido para ele – Manoel Nunes
da Silva – um fantástico momento de glória, uma contemplação
maravilhosa do infinito azul do olhar de todas as belezas femininas da história.
Ele muito fez por merecer.