Ensinar como melhor forma de aprender
Quando José
de Anchieta e Manuel da Nóbrega aportaram na rudeza das selvas brasileiras,
no século XVI, para implantar, aqui, no maior coração geográfico
do mundo, uma nova civilização humana e bendita, devem ter sentido
a imensidão do compromisso religioso, político e, sobretudo afetivo,
que haviam assumido. A terra, apenas chã e mui formosa; o homem forte,
sadio, mas rasteiramente primitivo; as distâncias não apenas enormemente
grande para os padrões portugueses de léguas terrenas ou nós
marítimos, na verdade, uma imensidão quase universal, virgem,
sedutora e colossal.
Como começarem a tarefa, diante da barreira e do abismo que separavam
duas civilizações tão diferentes? Costumes, religião,
capacidades de comunicação, tudo constituindo um enigma desconcertante.
Os dois religiosos traziam todo o potencial de organização do
pensamento civilizado, haurido de milênios de trabalho intelectual no
além-mar. Os índios, portadores de um vocabulário e de
um código mantido por apenas algumas centenas de pensamentos e formas,
quase todos da área concreta da linguagem dos objetos da caça,
da guerra, do dia-a-dia, das choças e da vida em família, da pequenez
do culto pagão. Nenhum lavor intelectual, nenhum vislumbre de cultura
civilizada. Como conciliar tão diferentes padrões de pensamento,
da ética e capacidade individuais?
Aí, começa a grande tarefa dos recém-chegados. Primeiro,
observar e compreender, depois, superar as divergências. Contorná-las,
elucidá-las, vencê-las a qualquer custo. De sotainas arregaçadas,
braços e mãos dispostos ao trabalho fraterno, a grande luta para
alcançarem o alvo inicial e maior: os corações indígenas,
singelos e puros, desativados de pompa filosófica. A confiança
mútua é indispensável, mas só possível do
relacionamento de igualdade, da união de forças e inteligências.
Aí, nessa hora, começa a luta para superar as divergências
lingüísticas. Mas, como ensinar filosofia, ética, artes a
um povo que se limita ao pequeno mundo das coisas palpáveis do interesse
imediato? Como dizer o que é coragem, fé, confiança? Como
traduzir termos como amor, satisfação, e esforço íntimo?
Como indicar com segurança técnicas de aprendizagem de compreensão
e desenvolvimento? Homens afeitos ao domínio dos canais de comunicação
em línguas antigas e modernas, aprendem logo as bases do vocabulário
tupi e iniciam a primeira jornada pedagógica e artística do Brasil.
Tornam-se os primeiros diretores, atores e coadjuvantes do teatro brasileiro.
Padres e índios transformam-se em artistas e mestres da representação
no palco – da escola, da arte, da vida. No desenrolar das cenas, homens
e mulheres, velhos e crianças aprendem, em latim, português e tupi,
a representação fonológica de cada termo e traduzem idéias
o significado de cada atitude, o valor do bem e do mal, da simpatia e do desprezo,
do prêmio e do castigo.
Movimentando-se diante dos cenários do grande palco catequista, cada
vocábulo é dominado por uns e por outros, numa simbiose de capacidades
pessoais dignas do mais alto respeito e admiração afetiva. A compreensão
passa a superar divergências, sobrepor-se às diferenças
até que chegue a hora do intercâmbio perfeito, do entendimento
ideal. A afeição passa a reinar de parte a parte, porque o ato
de compreender dissolve as barreiras. O trabalho que realizam é bom,
corresponde à verdade e vem criar novas amizades. Além disso,
é justo para todos os interessados.
Pergunto, agora, se ainda não estamos necessitando do mesmo tipo de entendimento,
quase meio milênio depois. Se já não há a barreira
da fala ou da fé, do nu ou do vestido, não se pode descartar a
inexistência de outros empecilhos entre eles, do ter e do não ter,
do saber e do não saber, até mesmo terríveis barreiras
sociais, culturais, da própria forma de viver e sobreviver. Cada dia
tornando-se a vida mais difícil, é preciso criar a hora do reencontro,
se já não mais entre catequistas e selvagens, na verdade, entre
civilizados e civilizados, porque, infelizmente, uns muito mais e outros muito
menos, uns com muito, outros com muito pouco.
Dura realidade...